A Formidável Literatura de Rubem Fonseca
Rubem Fonseca, sem dúvida nenhuma, pode ser considerado o mais autêntico, original e contundente autor de narrativas policiais da literatura nacional. Com um estilo incrivelmente distinto e pungente, expressivo e avassalador, mas ao mesmo tempo sutil, evasivo e às vezes radicalmente niilista, o contista, romancista, roteirista e cronista natural de Juiz de Fora merece lugar de destaque no panteão da literatura de língua portuguesa, por sua obra excepcionalmente inquietante, magistral e singular.
Rubem Fonseca foi um daqueles distintos autores que fez de tudo na vida antes de ser consagrado como um dos maiores nomes de nossa literatura. Só teria meios financeiros para dedicar-se em tempo integral a arte literária depois dos quarenta. Antes disso, foi escrivão da chefatura de polícia, foi professor, trabalhou em empresas privadas e foi redator de textos para o IPES, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, entre muitas outras ocupações; enfim, fez na vida um pouco de tudo para ter um salário e sobreviver. Publicou o primeiro livro aos 38 anos, uma coletânea de contos intitulada Os Prisioneiros, lançada em 1963.
Depois de publicar mais dois títulos, no entanto – A coleira do cão, em 1965 e Lúcia McCartney, em 1969 -, o autor se consagraria como um dos mais originais, lúcidos e genuínos prosadores brasileiros, que não apenas renovaria a literatura policial, mas daria a ela tonalidades tipicamente brasileiras, distanciando-a de sua identidade irreversivelmente norte-americana, que ainda monopolizava o gênero. Igualmente, o autor daria a cada um de seus textos o inconfundível vigor do seu estilo objetivo, ainda que às vezes perversamente dispersivo; niilista, pessimista e duramente realista, mas ao mesmo tempo carregado de lírica redenção e despojamento, sua literatura pode ser tão sutilmente macabra quanto esplendidamente cativante.
Não obstante, uma coisa é certa. Quando pegamos um livro de Rubem Fonseca, somos arrebatados para um universo denso e sombrio de desmesurada hostilidade, frequentemente habitado por personagens que sobrevivem encolhidos nas assombrosas amarguras de suas próprias lamúrias e comiserações – mas que ainda assim conseguem escapar das torpes ruínas íngremes da miséria humana -, sendo um a um graciosamente inseridos em narrativas de considerável fôlego, que combinam as circunstâncias extremas de situações tipicamente subversivas com a atmosfera urbana de um Brasil em expansão, saturado de pessoas intrigantes e interesseiras, geralmente alheias à maldade que se perpetua ao seu redor.
Com personagens geralmente oriundos das classes baixas – que não se deixam intimidar pela brutalidade da realidade -, os enredos de Rubem Fonseca ocultam sutilezas surpreendentes, que não apenas despertam a argúcia da curiosidade, mas muitas vezes obrigam o leitor a conduzir a trama de dentro para fora, sem que esta permaneça, no entanto, hermética ou ininteligível. Não obstante, afinar os decretos da razão e a inquietação da inteligência são exercícios compulsórios na leitura de qualquer livro de Rubem Fonseca; tanto quanto as personagens, os enredos podem ser desafios contundentes às percepções, que se nivelam em narrativas densas e convulsivas, retratadas em um mundo suburbano não raro sinistro, melancólico e febril, povoado pelos tipos mais imorais e devassos da sociedade humana.
Em 1973, Rubem Fonseca publicou o seu primeiro romance, intitulado O Caso Morel. Dez anos depois, publicaria o segundo, intitulado A Grande Arte. Neste fantástico romance policial, o advogado Mandrake – que se tornaria a mais emblemática criação do autor, personagem de muitos dos seus livros – investiga uma série de misteriosos assassinatos, cometidos por um criminoso que é mestre no manuseio de armas brancas. O filme ganhou uma adaptação cinematográfica em 1991, que foi dirigida pelo cineasta Walter Salles.
Em 1975, Rubem Fonseca publicou um dos seus mais agraciados livros de contos, Feliz Ano Novo, que chegou a ser censurado pelo governo militar. Uma coletânea de narrativas relativamente breves, porém abrasivas e inquietantes, neste livro, Rubem Fonseca mostra não apenas sua sensível e voraz versatilidade, como também sua capacidade de prender o leitor da primeira à última página, através de textos tão enxutos quanto eufóricos, que não fazem nenhuma apologia às deliberações mais fatalistas da condição humana. No conto que dá título ao livro, um grupo de criminosos decide assaltar a residência de pessoas da alta sociedade, durante a véspera de ano novo. Em uma narrativa sórdida – por vezes cruel, repugnante e agressiva -, temperada com a solicitude das mais intempestivas e sinistras reverberações da maldade humana, o leitor fica estarrecido diante do refinamento objetivo do autor, capaz de transformar a banalidade do corriqueiro e a fugacidade da linearidade temporal em elementos da mais lúdica e virtuosa arte literária.
Em 1988, Rubem Fonseca publicou o romance Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos, cujo protagonista é um cineasta que está analisando uma proposta para dirigir um filme; no entanto, ele é consumido pela sua obessão em saber tudo sobre a vida do famoso escritor russo Isaac Babel. Quanto a ser cineasta, Rubem Fonseca confessou em diversas ocasiões que gostaria de exercer essa profissão, em paralelo à sua carreira de escritor. Em muitos dos seus livros — Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos é um deles —, o autor revela um excepcional conhecimento sobre a sétima arte. Seu filho, José Henrique Fonseca, é um cineasta. E, ainda que nunca tenha dirigido um filme, seu talento como escritor levou Rubem Fonseca a tornar-se roteirista de cinema e televisão.
Em 1990, Rubem Fonseca publicou Agosto, romance que muitos consideram seu Magnum Opus, e que possivelmente pode ser considerado o seu livro mais conhecido. Adaptado como uma minissérie pela Rede Globo em 1993, a história segue o protagonista, comissário Alberto Mattos, na obrigação de desvendar um homicídio executado em circunstâncias extremamente misteriosas. O enredo da trama se passa em agosto de 1954, ou seja, no turbulento e atribulado último mês de vida de Getúlio Vargas.
O romance, portanto, faz o cruzamento de eventos fictícios com realidades históricas contundentes, tendo como pano de fundo as instabilidades políticas que acometiam o Brasil daquela época, dos quais destacam-se o atentado da rua Tonelero – praticado por agentes ligados ao governo para tentar assassinar o jornalista Carlos Lacerda – e o subsequente suicídio de Getúlio Vargas, ambos descritos de maneira ostensivamente pugente e realista na trama. Um excelente trabalho de ficção, que se dilui sobre acontecimentos históricos factuais, Agosto não é apenas um dos melhores trabalhos de Rubem Fonseca, mas é também um dos mais excelsos e fundamentais romances policiais da história da literatura brasileira.
Em 2004, a Companhia das Letras publicou a fantástica coletânea 64 contos de Rubem Fonseca, um volume de oitocentas páginas que reúne os melhores contos do autor. Três anos depois, em 2007, esta mesma editora publicou O Romance Morreu, o único livro de crônicas de Rubem Fonseca, que reúne textos que o autor havia publicado somente online. Um livro singular, onde Rubem Fonseca expõe — sem quaisquer pretensões didáticas ou exibicionismos — sua fantástica erudição, nesta obra formidável, tão inadvertidamente sagaz quanto surpreendentemente divertida, fica evidente porque Rubem Fonseca consagrou-se como um dos maiores autores brasileiros contemporâneos, e porque deve continuar sendo lido, publicado, difundido e divulgado, aonde quer que hajam amantes da boa literatura. Sua capacidade de observação, sua leitura pessoal da realidade, sua sensibilidade cosmopolita e suas intrigantes análises sobre cultura, literatura e cinema, além do seu inigualável senso de humor, agregam ao leitor um tão vasto universo de conhecimentos, que é impossível não se tornar um exímio leitor de Rubem Fonseca depois da leitura deste livro.
Entre 2005 e 2007, a HBO produziu o seriado Mandrake, estrelado por Marcos Palmeira, e inspirado no famoso personagem criado por Rubem Fonseca. O roteiro de diversos episódios foram escritos pelo próprio Rubem Fonseca, e alguns deles foram dirigidos pelo seu filho, José Henrique Fonseca.
Com mais de trinta livros publicados, Rubem Fonseca deu ao gênero policial elementos tipicamente brasileiros, cujas fontes, derivadas da realidade urbana indissociável do universo brutal de seus personagens, podem ser debitadas à sua intempestiva e magistral criatividade, bem como à sua arguciosa capacidade de observação analítica. Com uma originalidade literária reverberante, e uma linguagem verdadeiramente genuína, que transpira humor e letalidade, paixão e angústia, êxtase e sofrimento em doses cavalares, a realidade da existência humana suspira suas agruras mais sofríveis e imponderáveis com Rubem Fonseca, cujas narrativas saturadas de mordacidade e redenção cativam o leitor através de um arrebatamento literário singular, que apenas cresce conforme o leitor se aprofunda na leitura.
Altamente premiado, traduzido para diversos idiomas e publicado em dezenas de países, temos em Rubem Fonseca não apenas um vigoroso representante da literatura brasileira em seu mais elevado grau, mas um relevante expoente do gênero policial — em sua forma mais refinada, original e inquietante —, que certamente terá o seu valor reconhecido e apreciado por inúmeras gerações de futuros leitores.
Nascido em 11 de maio de 1925, infelizmente Rubem Fonseca faleceu há alguns meses, no dia 15 de abril, aos 94 anos anos. Natural de Juiz de Fora, Rubem Fonseca viveu a maior parte da sua vida no Rio de Janeiro. Tendo publicado 12 romances e 19 livros de contos, o autor certamente merece o lugar de honra que conquistou em nosso panteão literário. Simplesmente magnífico, inigualável e insubstituível, seu sensacional legado literário constitui um dos mais relevantes, extraordinários e expressivos patrimônios criativos do vasto universo cultural brasileiro.
Colaboração: Wagner Hertzog.
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